Jovens, desobedeçam


Só a teimosia de quem gritou que algo estava errado no mundo, como a poetisa Ingrid Jonker na África do Sul do apartheid, permite enterrar velhas ideologias. Por Matheus Pichonelli

O grupo entra na sala de aula para uma prova e nem imagina que os outros colegas da classe são, na verdade, atores contratados para um estudo científico. A prova começa e, alguns minutos depois, alguém de fora grita que o prédio está pegando fogo. Os atores fingem que nada acontece e permanecem no local. A exemplo dos colegas, as “cobaias” não se movem: estão contaminadas pelo clima de que nada de grave está acontecendo.

Em outra situação, com outras “cobaias”, o mesmo grito de “fogo” é ouvido. Desta vez, os atores entram em pânico, que logo contamina os não-atores. E todos abandonam seus lápis e saem correndo. Nos dois casos, a inércia só fora quebrada (ou não) por um grito de alerta anterior.

Foi lembrando dessa pesquisa, sobre “comportamento de manada” e relatada nos tempos da faculdade, que deixei, na quarta-feira 28, a sessão de “Borboletas Negras”, cinebiografia da poetisa sul-africana Ingrid Jonker dirigida por Paula van Oest. O filme tem como pano de fundo a África do Sul dos anos 1960, época em que os absurdos do Apartheid eram ainda ofuscados pela calmaria vendida por quem tentava manter a ordem vigente. Ainda que a ordem vigente fosse separar brancos de negros, e manter estes à míngua (e à distância) de toda sorte de direitos.

Logo nas cenas iniciais, Paula van Oest leva longos segundos para filmar o movimento das ondas, numa praia da Cidade do Cabo, que são quebradas pelo vento em direção ao Oceano. Nessas águas, Ingrid (personagem de Carice van Houten) fica presa entre a corrente e a contracorrente. Sob risco, ela é socorrida pelo também escritor Jack Cope (Liam Cunningham). Ele passava pela praia, resolve ajudar a desconhecida e impede o seu afogamento. “Não adianta nadar contra a corrente”, alertou em seguida o escritor, com quem a poetisa viveria um longo e tortuoso romance.

Na África do Sul, negros tinham circulação restrita a áreas pobres e abandonadasSe tivesse seguido o alerta, na vida e na obra, talvez Ingrid Jonker não tivesse sido lembrada por Nelson Mandela, anos depois, como um dos símbolos da libertação de seu país. Para isso não foi necessário pegar em armas, mas romper, por meio da literatura, as amarras que a prendiam em seu próprio tempo. Para Ingrid Jonker, autora praticamente desconhecida no Brasil, este era um esforço duplo: seu pai, Abram Jonker, era um político africâner nacionalista que via a exclusão dos negros (para ele, seres inferiores) como algo natural. Era também responsável pelo departamento de censura do governo vigente. Escrever e influenciar o mundo não eram mais desafiadores para ela do que convencer o pai sobre os absurdos de sua época, da qual compactuava e reproduzia. Seu primeiro livro é dedicado ao pai, que a rejeita. Para ele, a filha era sua própria negação.

O intricado diálogo entre pai e filha deixa expostas as fraturas resultantes do embate entre uma geração que sai de cena, com seus velhos preconceitos e ideologias, e outra que tenta emergir – e cujas mudanças só vão se consolidar anos à frente. O combate, de um lado, é feito com qualquer pedaço de lápis que permita colocar para fora o fluxo de consciência por meio da poesia; de outro, é combatido pela lei, pelo silêncio ou pela censura. Isso na melhor das hipóteses: nas áreas reservadas aos negros, a violência explode com qualquer esboço de mudanças reivindicado pelos grupos recriminados.

Quando testemunha o assassinato de uma criança negra num bairro exclusivo para negros, Ingrid se dá conta de que aquela luta também era dela. O que a leva a escrever um de seus mais famosos poemas:

The child is not dead

The child lifts his fists against his mother

Who shouts Afrika ! shouts the breath

Of freedom and the veld

In the locations of the cordoned heart

São apenas palavras contra um país tomado por leis absurdas, que, como a contracorrente do início do filme, a afasta da terra firme. Mas se espalham feito rastilho de pólvora pelos guetos, grupos de intelectuais, e pessoas que começavam a perceber que, lá fora, alguém avisava que um prédio estava em chamas.

As consequências desse grito não são outras se não a tragédia provocada pelo rompimento não só histórico, mas também familiar e social. Drama que a empurra para a loucura.

Ingrid Jonker, no papel de Carice van Houten, vive romance atribulado com Jack Cope (Liam Cunningham)Influenciado pela história, baseada em fatos reais, lembrei também que, quando criança, fui escolhido como orador da formatura do meu pré-primário. Lembro até hoje do juramento, do alto dos seis anos de idade: “eu prometo ser honesto, honrar os mais velhos, cuidar dos mais novos” e uma série de blábláblá que meus colegas, como cordeirinhos, repetiam. Éramos crianças, mas já assumíamos o compromisso de que, acontecesse o que acontecesse, jamais romperíamos a ordem que nos acabava de ser entregue.

Era uma propagação gratuita, em escala industrial, da multiplicação de indivíduos dóceis, incapazes de sugerir ou encaminhar mudanças em seu próprio tempo e espaço. Tudo o que fosse contrário era desobediência ou rebeldia gratuita – que, 28 anos depois, me fazem pensar em quantas Ingrids Jonker sairiam daquela formatura caso não cumprissem à risca o juramento ou não fossem dopados, pelos pais, com remédios contra a hiperatividade.

Mesmo assim, se tudo der certo, os que tiveram coragem de apontar caminhos vão fazer com que, daqui a 50 anos, as pessoas estudem este tempo de absurdos em que potências ocidentais ajudavam a proliferar o terrorismo com o argumento de combate preventivo. Ou se debruçar para entender um tempo em que pessoas do mesmo sexo não tinham os mesmos direitos civis, de um tempo em que os próprios governos escolhiam os integrantes das Supremas Cortes, de um tempo em que só pobres iam para a cadeia e de um tempo em que as pessoas haviam perdido a modéstia ao defender em público a perpetuação de privilégios originados de um tempo de escravidão ancestral.

Um tempo em que tudo parecia certo porque tudo era vendido como natural. Porque tudo estava referendado pela ordem e pela lei.

Matheus Pichonelli, jormado em jornalismo e ciências sociais, é subeditor do site e repórter da revista CartaCapital desde maio de 2011. Escreve sobre política nacional, cinema e sociedade. Foi repórter do jornal Folha de S.Paulo e do portal iG. Em 2005, publicou o livro de contos ‘Diáspora’.

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